domingo, 30 de setembro de 2012

Branco e Vermelho



Você tinha essa estranha fixação por coisas brancas. As toalhas, os lençóis, tapetes, cobertores, louças, sofá, travesseiros, dentes, pele. Mas o branco é revelador e amedronta; o branco não esconde nada. Como você poderia ter obsessão por uma coisa tão diferente de você, eu pensava.

De tão alva, sua casa não era muito convidativa. Não me sentei, nem me enxuguei, mal andei de um lado para o outro. Quando entrei fiquei quieto, em pé em um canto, sem mover muito os pés, com medo que qualquer grão de poeira se soltasse do solado do meu sapato e me denunciasse nos azulejos claros da sua sala de estar.

Tudo exalava limpeza e o cheiro de alvejante queimava meu nariz. O branco precisa sempre estar limpo. Subi as escadas em direção ao quarto buscando refúgio, mas não me atrevi a deitar na cama. Houvesse qualquer ruga ou sombra no lençol meticulosamente estendido e você não me aceitaria mais ali. Me senti perdido. Não havia para onde fugir, era um labirinto de pureza e perfeição.

Desci as escadas com pressa. O degrau polido, porém, estava escorregadio e tudo foi tão rápido que não consegui me segurar. Um borrão branco passou depressa pela minha vista e tudo ficou preto. Minha cabeça se chocou com força na parede, manchando tudo de sangue. Me desculpe, eu não queria sujar nada, eu juro. Sei que se irritará quando chegar e ver que, além do branco, agora há vermelho por toda parte. E miolos.

Mesmo que você limpe com afinco, sempre haverá uma mancha ali. Os convidados que trouxer a olharão e pensarão que aquela parede um dia deve ter sido bela sem aquela mancha. E você, sempre que for subir as escadas, tentará desviar o olhar, mas um pedaço de mim continuará ali, colado à sua parede, ainda que evite pensar nisso. Isso é o que restou de mim, uma mancha vermelha na sua parede branca.

domingo, 23 de setembro de 2012

Anos


Vão-se os anos
                   pouco me resta
     embaixo dos panos

sábado, 15 de setembro de 2012

Teia



A velha senhora-aranha resignava-se a fazer seu trabalho. Sentada em sua cadeira macia, tecia tecia tecia sem parar, por dias a fio. Suas mãos doloridas não cessavam a labuta dia e noite, pois era isso que esperavam dela.

Enquanto tecia, imaginava se um dia sairia dali para ver o mar e se o mar pararia para ser visto, que não deve ter coisa mais bonita que aquela imensidão azul, mesmo ela sendo levemente alérgica à água.

Sonhava e tecia, e sua criação tinha a forma das mais belas ondas que nunca vira. O vermelho do sangue dos seus dedos machucados misturava-se ao azul de sua nostalgia e amenizava o seu tédio.

Anos findados, a senhora-aranha deu por terminado seu trabalho, mas houve um problema. Não conseguiu se levantar da cadeira. As teias criadas transpassavam-lhe o corpo, os braços, as pernas. Não era possível se mover. Estava presa dentro de si. E o mar nunca foi visto.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Esperança imortal



Sento-me na poltrona, em frente à sacada do apartamento. O ar da noite é frio e traz esperanças. O relógio marca algo entre duas e três da manhã, não sei com exatidão. O que sinto também não é exato. Olho para baixo e vejo o quanto a vida é frágil, um leve impulso e caio, despencando em câmera lenta. Ainda posso me ver lá em cima, olhando para mim mesmo e, se me conheço bem, sei que meu outro eu deve pensar que isso foi uma idiotice, jogar-se do décimo nono andar, mas não há o que ele possa fazer.

Enquanto caio, não se passa nenhum filme em minha mente, como costumam dizer. Só consigo pensar em quanto a vida é mais curta do que pensei. Fecho os olhos e imagino como será quando meu corpo se espatifar no chão, mas é uma sensação que nunca chega. Caio num abismo eterno dentro de mim mesmo.

O ar gelado me faz despertar, ainda no décimo nono andar, ainda em meu apartamento. Respiro aliviado. Não havia acabado, a esperança era imortal por mais uma noite. Irracional que sou, sobrevivo de novo.

domingo, 2 de setembro de 2012

Leitura da semana #4

Semana calma, de muita inspiração, mas de muito trabalho também. Além de reler uns livros antigos, li apenas um livro novo, que segue aí.


GAROTOS MALDITOS (Santiago Nazarian)

Toscamente engraçado. Sempre curti muito o Nazarian e agora ele veio com essa nova pegada de um livro voltado para o público infanto-juvenil e, devo dizer, tirando o clima gótico, bem diferente de tudo que já li dele. Não posso dizer que eu tenha gostado tanto. Achei algumas gírias muito forçadas, o protagonista com personalidade contraditória (não propositalmente) e a sinopse na contracapa do livro estraga totalmente o mistério da história. Algumas partes, entretanto, são tão toscas que o que sobra é dar boas risadas de se pensar como o autor inventou aquilo. As ilustrações do Lestrange estão muito boas e combinaram bem com a história. Um ponto positivo é que o livro não caiu nos clichês do sobrenatural, até fazendo piadas sutis sobre isso.

sábado, 1 de setembro de 2012

Desencanto



na melodia do desencanto
   nos meus olhos
                 tudo é pranto