segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Meia noite e um


Eduardo tinha o costume de nunca chegar na hora certa. Olhou o relógio, que marcava meia noite e um. Droga, entrou atrasado no novo ano.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O fim está próximo



A notícia veiculada na TV às 16h15min mal havia durado 5 minutos e o caos já se instalava nas ruas da cidade. O máximo que Beto se limitou a fazer foi se levantar do sofá e fechar a janela para tentar abafar o som das pessoas que corriam desesperadas lá fora.

“Pelo menos não vou ter que trabalhar hoje”, pensou irônico. Roberto beirava a casa dos quarenta anos e seu porte físico lhe rendera um trabalho meia-boca como segurança noturno em uma loja de departamento, dividindo seu tempo também como escritor amador e preguiçoso profissional.

“Será que não é mais uma piadinha de mau gosto?”, foi a segunda coisa que pensou, dessa vez sem ironia. “Se for, já estou rindo por dentro.” Levantou-se quase se arrastando e foi checar os sinais. A televisão, que há pouco anunciara o desastre, exibia apenas sua monótona tela azul, o celular sem rede disponível. Não teve ânimo em verificar o sinal da internet, dada a situação do telefone completamente mudo.

“Então é mais ou menos assim que começa o fim do mundo”. Se jogou no sofá novamente e respirou fundo. Se sua família estivesse próxima talvez se sentisse tentado a procurá-los, dizer coisas como eu te amo e sempre fui feliz com vocês, mas um pai alcoólatra e uma mãe submissa não lhe inspiravam esse tipo de compaixão, mesmo se morassem na casa ao lado.

Falando em casa ao lado, Beto se deu conta de que não sabia nada sobre seus vizinhos. Um velhote morava na casa da direita, disso tinha certeza, pois o cumprimentara um par de vezes acenando a cabeça quando se topavam na rua de frente. Já na casa da esquerda, não fazia ideia. Enquanto se dirigia à cozinha, arriscou-se em afastar a cortina e olhar para a casa desconhecida. Parecia calma, até mesmo deserta. E isso faria diferença agora?

O grandalhão abriu a geladeira, deixando com que a luz amarelada penetrasse na penumbra do ambiente. Correu os dedos entre garrafas de água, um tupperware com o almoço de três dias atrás (nem se daria ao trabalho de jogá-lo fora) e pegou as únicas três latas de cerveja deixadas ali de canto, voltando para a sala, agora um pouco iluminada.

Ele achou, pelo menos, que beber era a melhor coisa a se fazer antes da morte. Beber e trepar. Mas dadas as possibilidades se ateria apenas à primeira opção; não iria se satisfazer sozinho numa hora dessas – faltava inspiração e vontade. A cerveja descia gelada e amarga. Talvez devesse fazer algo grandioso, que ficasse na história, ou fazer alguma coisa que sempre teve vontade de fazer, mas que não se arriscara até então. Deixar a barba crescer, terminar de escrever um dos seus romances (quem sabe não tivesse sido famoso?), saltar de paraquedas, fazer sexo sem camisinha, ganhar na loteria, arrumar um amor verdadeiro. Mas talvez não tivesse tempo para isso tudo. Quanto tempo o mundo ainda teria? Pena o sinal da TV ter se extinguido antes de obter essa informação.

Já com a segunda cerveja na mão, olhou para a escrivaninha que também ficava na sala. Um monte de papéis empilhados, alguns até amassados. Sempre tivera preguiça para organizar – não só os papéis, mas também suas ideias. Queria ter se dedicado mais, lido mais. “Dinheiro pode ser tirado de você, já sua cultura não.”, ecoava a voz de um dos professores do curso de Letras que não chegou a concluir. O que seria do dinheiro e da cultura agora? Obliterados.

Se sentou em frente a um dos papéis em branco. Quem sabe pudesse escrever algo inspirador, que ficasse gravado na memória ou no tempo que tinha pela frente.

O fim está próximo.

Foi o que escreveu, mas parecia não ter se convencido.

O fim está MUITO próximo.

Pronto. Melhor do que nada. Algumas palavras, ainda que desconexas e com péssima caligrafia, são melhores que uma folha em branco. Seria esse o título ou uma parte do texto? Sua cabeça começou a doer e decidiu parar de escrever. O tempo estava correndo e não queria desperdiçar seus últimos momentos.

Sentou-se novamente no sofá em companhia da terceira cerveja. Sem opções, pôs-se a imaginar como seria o fim. Um show pirotécnico de destruição em massa? Gostaria que fosse rápido e, de preferência, sem sangue. Não podia com sangue e ver tudo manchado de vermelho na hora final seria um tanto quanto desagradável.

“Cadê esse fim do mundo que não chega logo?”, pensou irritado. Roberto estava entediado, e tão perto do fim. Não queria mais trabalho, escritos, família, vizinhos. Aquele era o momento certo para ele, o momento em que finalmente parecia se encaixar. O local continuava apenas com a fraca luminosidade da geladeira aberta na cozinha. Três latas de cerveja jogadas no chão. Um homem jogado no sofá, agora chorando. O que mais temia ia acontecer: estaria sozinho no fim.

Beto enxugou as lágrimas, que homem não chora nem em uma hora dessas. “Será que dá tempo para uma mijada?”, falou consigo.

Enquanto caminhava para o banheiro, o relógio pregado na parede acima do umbral do corredor marcava exatamente 17h15min. Então tudo se apagou.

Não, não dava mais tempo.

domingo, 4 de novembro de 2012

Buraco no peito


Ainda não estou bem. Talvez só fisicamente bem. Mas aqui dentro ainda tem um buraco bem grande, um buraco em meu peito. Não acho que isso vai passar, mas vou saber colocar algo em cima para disfarçar. É isso que fazemos com buracos que não podem ser tampados.

domingo, 28 de outubro de 2012

Nota de jornal



Hoje uma nota no jornal me lembrou de você. Quase ninguém deve ter visto. Ele vinha espremida entre a notícia de uma cara que foi preso por ter sido confundido com um criminoso americano e uma reportagem sobre aumento de impostos. Ela parecia bem perdida ali, deve ter passado quase despercebida ao editor.

Falava sobre Cusco e a escuela cusqueña. Você sempre teve grande paixão por ambos, a cidade e arte em geral, e era apaixonante te ouvir falar sobre isso. Tenho um livro grande aqui na minha estante e é por ele que conheço Cusco – a cidade turística, não a do seus olhos. Aquela pequena nota de jornal me fez lembrar de muita coisa e, enquanto eu apertava os olhos para enxergar as letras tão miúdas, algumas gotas umedeceram sem querer o papel, desmanchando mais uma lembrança.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Mãos de Tinta




Se minhas mãos fossem de tinta, meu papel seriam muros, telas urbanas pedindo uma chance, e minhas cores – displicentemente colocadas – seriam história.

Um sujeito, atrasado para o trabalho, não resistiria a parar e olhar a tinta que ainda pulsava, seguindo o ritmo das batidas do coração do muro-mundo. Quando não é possível entender, você se resigna a sentir e deixa que seus olhos naveguem.

Se meus dedos fossem pincéis, minha arte seria imediata; não me engasgaria com vírgulas e verbos. Todas minhas ideias refletiriam traços, ainda que abstratos, sobre uma parede abandonada. Se minhas mãos fossem de tinta, jamais secariam.

domingo, 30 de setembro de 2012

Branco e Vermelho



Você tinha essa estranha fixação por coisas brancas. As toalhas, os lençóis, tapetes, cobertores, louças, sofá, travesseiros, dentes, pele. Mas o branco é revelador e amedronta; o branco não esconde nada. Como você poderia ter obsessão por uma coisa tão diferente de você, eu pensava.

De tão alva, sua casa não era muito convidativa. Não me sentei, nem me enxuguei, mal andei de um lado para o outro. Quando entrei fiquei quieto, em pé em um canto, sem mover muito os pés, com medo que qualquer grão de poeira se soltasse do solado do meu sapato e me denunciasse nos azulejos claros da sua sala de estar.

Tudo exalava limpeza e o cheiro de alvejante queimava meu nariz. O branco precisa sempre estar limpo. Subi as escadas em direção ao quarto buscando refúgio, mas não me atrevi a deitar na cama. Houvesse qualquer ruga ou sombra no lençol meticulosamente estendido e você não me aceitaria mais ali. Me senti perdido. Não havia para onde fugir, era um labirinto de pureza e perfeição.

Desci as escadas com pressa. O degrau polido, porém, estava escorregadio e tudo foi tão rápido que não consegui me segurar. Um borrão branco passou depressa pela minha vista e tudo ficou preto. Minha cabeça se chocou com força na parede, manchando tudo de sangue. Me desculpe, eu não queria sujar nada, eu juro. Sei que se irritará quando chegar e ver que, além do branco, agora há vermelho por toda parte. E miolos.

Mesmo que você limpe com afinco, sempre haverá uma mancha ali. Os convidados que trouxer a olharão e pensarão que aquela parede um dia deve ter sido bela sem aquela mancha. E você, sempre que for subir as escadas, tentará desviar o olhar, mas um pedaço de mim continuará ali, colado à sua parede, ainda que evite pensar nisso. Isso é o que restou de mim, uma mancha vermelha na sua parede branca.

domingo, 23 de setembro de 2012

Anos


Vão-se os anos
                   pouco me resta
     embaixo dos panos

sábado, 15 de setembro de 2012

Teia



A velha senhora-aranha resignava-se a fazer seu trabalho. Sentada em sua cadeira macia, tecia tecia tecia sem parar, por dias a fio. Suas mãos doloridas não cessavam a labuta dia e noite, pois era isso que esperavam dela.

Enquanto tecia, imaginava se um dia sairia dali para ver o mar e se o mar pararia para ser visto, que não deve ter coisa mais bonita que aquela imensidão azul, mesmo ela sendo levemente alérgica à água.

Sonhava e tecia, e sua criação tinha a forma das mais belas ondas que nunca vira. O vermelho do sangue dos seus dedos machucados misturava-se ao azul de sua nostalgia e amenizava o seu tédio.

Anos findados, a senhora-aranha deu por terminado seu trabalho, mas houve um problema. Não conseguiu se levantar da cadeira. As teias criadas transpassavam-lhe o corpo, os braços, as pernas. Não era possível se mover. Estava presa dentro de si. E o mar nunca foi visto.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Esperança imortal



Sento-me na poltrona, em frente à sacada do apartamento. O ar da noite é frio e traz esperanças. O relógio marca algo entre duas e três da manhã, não sei com exatidão. O que sinto também não é exato. Olho para baixo e vejo o quanto a vida é frágil, um leve impulso e caio, despencando em câmera lenta. Ainda posso me ver lá em cima, olhando para mim mesmo e, se me conheço bem, sei que meu outro eu deve pensar que isso foi uma idiotice, jogar-se do décimo nono andar, mas não há o que ele possa fazer.

Enquanto caio, não se passa nenhum filme em minha mente, como costumam dizer. Só consigo pensar em quanto a vida é mais curta do que pensei. Fecho os olhos e imagino como será quando meu corpo se espatifar no chão, mas é uma sensação que nunca chega. Caio num abismo eterno dentro de mim mesmo.

O ar gelado me faz despertar, ainda no décimo nono andar, ainda em meu apartamento. Respiro aliviado. Não havia acabado, a esperança era imortal por mais uma noite. Irracional que sou, sobrevivo de novo.

domingo, 2 de setembro de 2012

Leitura da semana #4

Semana calma, de muita inspiração, mas de muito trabalho também. Além de reler uns livros antigos, li apenas um livro novo, que segue aí.


GAROTOS MALDITOS (Santiago Nazarian)

Toscamente engraçado. Sempre curti muito o Nazarian e agora ele veio com essa nova pegada de um livro voltado para o público infanto-juvenil e, devo dizer, tirando o clima gótico, bem diferente de tudo que já li dele. Não posso dizer que eu tenha gostado tanto. Achei algumas gírias muito forçadas, o protagonista com personalidade contraditória (não propositalmente) e a sinopse na contracapa do livro estraga totalmente o mistério da história. Algumas partes, entretanto, são tão toscas que o que sobra é dar boas risadas de se pensar como o autor inventou aquilo. As ilustrações do Lestrange estão muito boas e combinaram bem com a história. Um ponto positivo é que o livro não caiu nos clichês do sobrenatural, até fazendo piadas sutis sobre isso.

sábado, 1 de setembro de 2012

Desencanto



na melodia do desencanto
   nos meus olhos
                 tudo é pranto


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Bon Odori



As lanternas de papel coloriam as ruas estreitas do local. O céu ainda estava claro e as pessoas começavam a chegar. As pétalas de cerejeiras caídas no chão eram pisoteadas pelos distraídos.

Sem demora e cumprindo seu papel diário, o sol começava a se por. Era nessa hora que os convidados chegavam, era nessa hora que os mortos vinham às ruas. Vinham guiados pela saudade e pelas lanternas acesas que faziam da terra um pedaço de céu estrelado.

Sakura não se aguentou em si ao ver sua batian chegando, trajando o mais belo quimono. A garota sabia que o Bom Odori não era um dia de tristeza e enxugou a lágrima teimosa que insistia em escorrer pelo seu rosto. A velha senhora recém-chegada pegou a mão da neta e a pequena arrepiou-se. Seu toque era gelado, mas transmitia um calor gostoso.

Juntos, espíritos pessoas cerejeiras música e estrelas circulavam as ruas, festejando, antes que o sol nascesse e fosse hora de partir.

domingo, 26 de agosto de 2012

Leitura da semana #3

Após muitos meses de hiatus (leia-se desânimo literário), coloco de novo no ar a coluna Leitura da semana, que comento os livros que li durante a semana. Os livros dessa vez me deram um gás para voltar a me animar.

POR ISSO A GENTE ACABOU (Daniel Handler)

Mais um ótimo livro de Daniel Handler, que escreveu a coleção Desventuras em Série sob o pseudônimo de LemonySnicket. Apesar de ser uma temática bem diferente de seus livros anteriores, é fácil notar seu modo único de escrita que te prende até o fim. Foi justamente isso que aconteceu: não consegui desgrudar até terminar de ler. A história de uma garota com o coração partido que devolve uma caixa para o ex com todos os pertences que marcaram o relacionamento dos dois acaba se tornando interessante, mesmo que caia em alguns clichês de vez em quando. Cada capítulo se inicia com um dos objetos devolvidos e no decorrer, a protagonista explica como o objeto se relaciona com a história dos dois. Ela é apaixonada por cinema e, durante toda a história, compara vários acontecimentos com os filmes antigos (fictícios) que tanto gosta. Leitura que vale muito a pena.


CARVÃO ANIMAL (Ana Paula Maia)

Uma autora nacional que me surpreendeu bastante. Peguei a dica no blog do Santiago Nazarian. Difícil descrever o que me prendeu tanto no modo de escrita dela, mas achei interessante o fato de ela conseguir tornar uma história relativamente simples (sem elementos sobrenaturais/fantásticos) em algo tão interessante de se ler. No livro em questão, ela destaca como todos os personagens estão ligados às cinzas e ao carvão, adentrando o psicológico dos mesmos de forma espetacular. Fiquei bem curioso para ler mais dela.




MELHORES POEMAS DE PAULO LEMINSKI

Reunião de diversas poesias do Leminski que já foram publicadas em outros títulos, que eu já havia lido há muitos anos e agora comprei um exemplar pra mim (muito difícil de se encontrar, diga-se de passagem). Sou suspeito pra falar, já que sempre fui muito fã do Leminski. Se as palavras têm algum poder, com certeza foram mágicas nas mão dele.

sábado, 18 de agosto de 2012

Sobre viagens e despedidas




‒ Adivinha qual foi a primeira coisa que coloquei na mala.

‒ Alívio por deixar essa cidade.

‒ Eu ia dizer guarda-chuva, mas acho que você está certo.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Simplificando



Você sempre esteve dentro da média. Sua voz era calma e serena, seus movimentos não tinham uma graça específica, por vezes eram até duros demais. Não consigo dizer se era bonita ou feia. Era comum. Se caminhasse entre uma multidão dificilmente seria notada, e alguma criança mais esperta poderia te olhar e pensar: “Nossa, como ela é comum.” E ela estaria certa.

E como era bondosa... quase daquela bondade extrema que te faz ser passado para trás entre negociadores. Você era setenta e três por cento bondade. Pessoas boazinhas nunca me encantaram e foi por isso que amei você vinte e sete por cento. Amei você quando fazia caretas de raiva e quando respirava fundo para não explodir. Amei você naquele dia que soltou um palavrão entre dentes, cansada de esperar clientes indecisos na padaria que teimavam em experimentar os quitutes um a um, enquanto sua vez não chegava e você morria de vontade de comer um sonho.

Você foi sempre tão simples e acho que justamente por isso não foi difícil amar você, mesmo o pouco que amei. Até seus defeitos (os poucos existentes) soavam doces quando ditos.

Foi fácil te amar, como também foi fácil te esquecer. Quando saio com alguma mulher mais efusiva, entretanto, e ela fala alto e me constrange, sinto falta do seu beijo comum, quase sem gosto, do nosso papai-mamãe e de como você me acordava com um simples bom dia toda manhã.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Jovem-velho



Como eu podia aparentar ser tão jovem? Por fora ninguém me daria mais de vinte anos, mas por dentro meus dias estavam contados. Aqui dentro posso sentir a pele enrugada e o ossos velhos que limitam meus movimentos.

Entre pulos e mergulhos, ainda disfarço bem. Minha vontade agora, entretanto, era me sentar com minha xícara de chá e ouvir músicas antigas, de épocas em que eu nem era nascido, que me recordam momentos  ainda que não vividos. Talvez eu tenha sido a combinação errada de alma e corpo. Talvez devessem me abrir em uma maca de hospital e dizer o que há de errado comigo.

Às vezes me junto aos jovens e tento me misturar, mas eles me cansam em pouco tempo. Seus hormônios me dão náusea. Essa jovialidade toda me deixa tonto. Acabo me sentando em um canto mais isolado, trocando cartas e causos com companheiros senis. Digo a eles que estou apodrecendo e meu maior medo é que eu morra por dentro, mas continue vivendo por fora.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Despedida



Checo o relógio mais uma vez antes de chegar à estação de trem. Eu quero estar lá na hora certa. Adentro o local e logo a vejo, sentada em um banco, a mala ao seu lado. Garota-de-nome-difícil. Os cabelos ondulados, que em outrora tanto lhe cansaram, reluzem refletindo o pôr do sol do momento.

“Quase chego atrasado”, digo sorrindo sem graça e me sento ao seu lado.

“Ainda há tempo”, ela diz e é como se o vento de primavera tivesse passado por ali. Sua voz de cerejeiras e brisas doces me faria falta. Ainda que continuassem tentando, ainda era impossível imitar o seu som.

“Se lembra de como nos conhecemos?”, ela pergunta.

Eu nunca havia me esquecido.

“Era novembro”, ela continua. “Você estava perdido entre ilhas e cubículos e conversamos sobre máscaras, sextas-feiras e roupas que nunca combinaram.”

“E agora você é toda importante e vai nos deixar.”

“Eu preciso. Estou cansada, você sabe. E esse não é o meu lugar.”

Eu sabia disso tudo.

O apito do trem avisa sua chegada. A garota se levanta e pega sua mala, que era pequena demais para levar tudo que ela vivera por aqui – eu esperava estar em algum cantinho espremido ali dentro.

Nos abraçamos.

“Garota-de-nome-difícil”, eu sussurro.

“Você sabe que meu nome é ... “

Balancei a cabeça, confirmando.

Me distraio por um momento procurando a carta que tenho que entregar a ela, mas quando meu olhar a busca, não consigo encontrá-la.

Pronuncio seu nome agora certo. Não gaguejo. Um gosto doce me vem à boca. Mas ela não está mais ali para ouvi-lo. O trem se afasta, deixando para traz fumaça e saudades.

para Julia

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Fotografia


Namoravam há três anos e nunca haviam tirado uma foto juntos. A ironia: ela era fotógrafa.

sábado, 21 de julho de 2012

O último beijo



Me arrependi de ter lhe pedido aquele beijo. Beijos roubados sempre me agradaram o paladar, mas beijos forçados são como um deserto sem oásis. Sua boca seca nem se moveu quando meus lábios encontraram-na. Havia também certa eletricidade ali, não daquela boa que corre o corpo num primeiro encontro, mas daquela que repele, que dá medo de se machucar.

Mal nossos lábios se tocaram e eu recuei, notando sua expressão indiferente. Tive receio em insistir e ser sugado para seu saara, mas eu deveria ter tentado. Viveria exausto dentro de você, deixando que me absorvesse, se isso trouxesse vida a sua boca.

Por isso putas não beijam. Beijo exige compartilhar um pouco de sua loucura e elas preferem manterem-se inócuas em sua devassidão. Você não era puta, mas preferiu manter-se afastada também, a salvo. Quando te puxei para junto de mim, senti seu corpo tenso. Você sabia o que eu queria. Você sempre soube, mas esteve sempre desértica, elétrica, distante.

Na minha cabeça, eu finjo que o tempo parou naquele microssegundo, assim eu posso fazer durar o quanto eu queira. Às vezes, assisto em câmera lenta, dá um ar dramático legal, porém nunca chego ao fim do vídeo-pensamento, quando os lábios se separam. Eu edito em minha mente e corto essa parte, adiciono falas e efeitos – você sempre diria: por favor, não pare! ou colocaria a mão em minha nuca e não permitiria que nos afastássemos.

Se você soubesse que aquele seria o último beijo, talvez tivesse caprichado, ou mesmo nem o tivesse dado, fazendo com que não houvesse assim nenhuma lembrança de um beijo final.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Zumbi corredor



Os músculos das minhas pernas se contraem e relaxam de acordo com as minhas passadas. Estou correndo. Nesses minutos de pseudofelicidade, sinto o sangue fluindo com força para baixo. Meu cérebro está quase seco e finalmente todos aqueles pensamentos vão embora. 

Meu peito ainda exibe a cicatriz da cirurgia recente. Três aros no coração para aguentar o tranco. Não esperaria os seis meses de repouso; não esperei sequer um. Se eu estivesse pensando nesse instante, me daria medo imaginar a ferida se abrindo com o esforço e meu órgão pulsante caído ali no chão, sujeito a ser pisado por qualquer transeunte distraído.

Zumbis não pensam. Eu correndo sou um zumbi; por alguns momentos sou essa casca sem vida e sem preocupações. Direito, esquerdo. Direito, esquerdo. O padrão se repete sem fim. Acelero o passo e minha respiração segue o ritmo. Procuro mais problemas e eles próprios me motivam a esquecê-los, então corro. Esse é meu ciclo vicioso. O dificuldade de correr assim é nunca chegar a lugar algum.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Travessia sem graça


Na cidade grande, não havia mais aquela emoção de olhar para os dois lados antes de atravessar a rua. Lá se foi o aprendizado materno.

terça-feira, 27 de março de 2012

Sete fitas



Aguardaram ansiosas até que a chuva terminasse de cair. Enquanto as últimas gotículas nadavam iluminando o céu como pequenos pontos de cristais, as sete garotas pegaram as sete fitas que se formavam no céu e começaram a dançar.

Garotas e fitas rodavam ao som de uma música invisível, as pessoas cinzas assistiam de fora e sonhavam de olhos abertos. Os sonhos se juntavam às fitas, às cores e juntos pincelavam o céu úmido, trazendo algo que os habitantes dali não estavam acostumados, mas que alguns chamariam de vida.

Por alguns instantes as pessoas tinham cores, e de tão misturadas nem podiam ser nomeadas nesse instante. Ou posso tentar: azurelo, vermezul, roxermelho e até flicts. Quando a brisa se transformou em vento, as sete garotas agarraram-se firme em seus pedaços de pano multicoloridos e aproveitaram a carona.

Tudo voltou ao cinza costumeiro, mas dentro das pessoas algo estava vívido. Luna, que assistia quieta segurando a mão de sua mãe, só conseguia imaginar se poderia ser ela a segurar umas das fitas no ano seguinte... e sua mão levemente rosada trazia esperanças.

Imagem por Ricardo Chaves

sábado, 24 de março de 2012

Coisas na cabeça



Não importava o lugar nem a hora. Qualquer um poderia ter engatado uma conversa com ele e mesmo assim ele parava de repente. Seu olhar ficava vago, seu rosto sem expressão. Numa dessas, até falava sozinho, pegava seu caderninho de lugar-comum no bolso, anotava algumas palavras e depois voltava ao normal, retomando a conversa.

Era durante o café, no ônibus, andando na rua; não tinha uma regra, simplesmente surgia e ele paralisava.

“Tirando isso, meu filho é bem normal”, a mãe tentava se justificar. De tanta insistência de vizinhos e outros sem importância, entretanto, ela resolveu levar o filho ao médico.

Foram feitos todos os exames necessários, uns que doíam, outros que doíam mais ainda, e o médico ainda não havia chegado a um resultado. Foi quando aconteceu. O rapaz ficou imóvel, olhar fixo no horizonte e em nada ao mesmo tempo. “Ah sim, isso mesmo”, disse baixinho consigo e anotou algo em seu caderno.

“Ele é maluco, não é? É sim!”, perguntou a mãe, em prantos.

O doutor suspirou aliviado. “Não se preocupe, minha senhora. Ele não é maluco, é apenas escritor.”

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Uma coisinha ou outra sobre primeiro amor



Ele já estava estafado de todos falarem que era muito novo para se apaixonar. Ora, todo garoto de oito anos se apaixona! Qual é a novidade nisso, ele imaginava, enquanto escrevia mais uma das cartas de amor que sabia que não teria coragem de entregar e se acumularia com todas as outras na velha caixa de sapatos embaixo da cama.

Só podia ser amor, porque só o amor faz guardar o dinheiro do lanche durante duas semanas para comprar flores para a professora amada, faz ter vontade de não brincar no recreio só para espiá-la pela janela, faz ter vontade de crescer logo.

Foi aos oito anos também que ele entendeu o que era um coração partido.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CRÔNICA: O mistério da velhinha do ônibus



Era impossível dizer sua idade ao certo, mas beirava os 80. Tinha as rugas e o excesso de pele que toda pessoa de 80 anos tem. Seu cabelo era branco, encardido nas pontas, andava de modo lento e tinha um rosto sereno. Olhando assim, sem conhecê-la, qualquer um diria que era uma velhinha bem simpática (digo sem conhecê-la pois acho que ninguém a conheceu na realidade – talvez nem ela mesma). 

Tal velhinha era reconhecida por todos que freqüentavam o Ônibus 581 que passava pontualmente às 23h na Rodoviária de uma cidadezinha qualquer. 

A velha senhora sempre carregava em sua mão direita uma sacola cinza com dois pacotes de papel higiênico e sempre se sentava no terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo do ônibus. Era como um ritual e quase hipnótico de se ver. 

Vez ou outra, um ser distraído ou desinformado acabava se sentando no terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo do ônibus e a idosa se irritava. Essa era uma das poucas ocasiões em que se podia ouvir algum som emanando de suas cordas vocais: eram gritos, xingamentos e certos palavrões, querido leitor, que confesso desconhecer o significado. 

Esta senhora possuía essa única exigência para aqueles que a cercavam: não podiam de forma alguma sentar-se no seu banco! Sempre fazia valer esse seu ‘direito adquirido’, uma expressão que aqui significa um direito que conquistou através da sua força vocal. 

Foi assim durante um bom tempo. Todos que utilizavam o Ônibus 581 conheciam a velhinha e seu constante hábito de comprar papéis higiênicos. Aliás, fato este que nunca ficou bem esclarecido. Os tititis durante a viagem eram diversos, mas no fim chegaram ao consenso que deveria ser por necessidades fisiológicas mesmo; isso justificaria o cheiro estranho que ela exalava. 

No mês de outubro, porém, a chuva começou a castigar o ambiente e caía pesada na cabeça de alguém que, por desventura ou esquecimento, houvesse se esquecido de pegar o guarda-chuva antes de sair às ruas. Foi nesse período que a velha senhora desapareceu. Ninguém mais a viu freqüentar o ônibus nem seu cabelo branco encardido e nem o cheiro que às vezes chegava a desagradar. Talvez tivesse medo que a chuva pudesse dissolver o precisos conteúdo de sua sacola. 

Independentemente do que ocorreu, ela realmente não foi mais vista; e mesmo que o ônibus estivesse lotado (o que raramente acontecia), o terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo nunca mais fora ocupado. Sempre quando os relógios marcavam 5 minutos antes das 23h os cidadãos, com olhos fundos e sonolentos, colavam suas cabeças nas janelinhas e procuravam, em vão, pela velhinha e sua sacola de papéis higiênicos. 

Mas ela não estava mais lá. 
E o ônibus partia.

Esse é um dos antigos, que era para ser um conto e acabou se tornando uma crônica, ou um conto-crônica, sei lá. Deu saudade desse tempo...

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Leitura da semana #2

A semana foi bem fraca. Ao contrário de muita gente, eu uso as férias para ter ainda mais preguiça que o normal e foi basicamente isso que aconteceu. A semana de leitura foi (bem) fraca, mas está aqui.

A NOIVA DO TIGRE (Téa Obreht)

Ainda não acabei de ler, mas o livro me parece bem promissor. O escolhi devido a recomendação do Santiago Nazarian, um dos meus autores nacionais preferidos e o tradutor do referido livro. A história começa com a morte do avô de uma jovem médica e esta se recordando das histórias que ele contava para ela há tempos, além de outras descobertas fantásticas. O que não me acostumei com o livro foram os nomes de pessoas e lugares, pois se passa mais ou menos na região da Sérvia, mas com o tempo fica aceitável. Só mesmo quando eu acabar a leitura para ter uma opinião mais concreta, mas está valendo a pena.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Espelho



Bia se olhava no espelho e se achava gorda.
Paulo se olhava no espelho e se achava fracote.
Regis se olhava no espelho e se achava velho.
Alice se olhava no espelho e via outros mundos.

O espelho olhava para eles e ria, refletindo apenas o que eles queriam ver.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Leitura da semana #1

Hoje vou começar esse post semanal (ou não) para falar sobre os livros que li durante a semana e um breve comentário sobre eles.

EU SOU UM GÊNIO DE MALDADE INENARRÁVEL E QUERO SER SEU PRESIDENTE DE TURMA (Josh Lieb)

O livro tem uma pegada bem infanto-juvenil, mas é até bem divertido. Um garoto que se imagina rico e poderoso (fato esse que ninguém sabe devido seus esquemas mirabolantes para esonder sua influência) vai driblando assim o bullying que sofre, na busca de atenção e do posto de presidente da turma do colégio. Tem um humor ácido que faz valer a pena a leitura.





AXOLOTLE ATROPELADO (Hellene Hegemann)

De longe, a melhor leitura da semana. O livro invade um universo meio nonsense de Mifti, uma garota rica que mora na Alemanha, viciada em drogas. O livro teve bastante repercussão no seu lançamento, pois a autora, Helene, foi acusada de plágio, fazendo com que sua obra simplesmente fosse a colagem de diversas outras. Na verdade isso meio que acontece e o livro traz um apêndice com referências às obras que serviram de "inspiração" à autora. Mesmo sendo pesada, achei uma leitura diferente do convencional. Destaque para os devaneios de Mifti em que é difícil distinguir se são verdade ou não. Só para justificar o título, axolotle é uma espécie de  salamandra mexicana que conserva as características do seu estado larval, uma alusão a personagem principal que se mantém em seu estado adolescente.


ANTES QUE EU VÁ (Lauren Oliver)

A escolha desse livro foi pelo fato de eu querer algo mais sentimental para ler. Quase larguei nas primeiras 30 páginas por se tratar de um livro mais de menininha, citando um zilhão de marcas de cosméticos, roupas, lojas, bolsas, etc. Mas o livro fica mais profundo daí pra frente. A história é de uma garota que morre após um acidente  e começa a reviver o mesmo dia em busca de certas respostas. A autora até que lida bem no desenvolvimento da descrição da mudança do tempo e as leis de ação e reação de acordo com cada escolha da protagonista. Legalzinho.


oi, sou um axolotle e sou sempre risonho.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Classificados


Em meio aos anúncios de lojas, massagens terapêuticas, serviços de detetives, filhotes de dálmata, cursos de aeromoça, Natashas, Franciellys e Raíssas (completas, exageradas) e promessas da pessoa amada de volta em sete horas, Jorge encontrou um pequeno espaço para declarar seu amor, mas os poucos trocados que trouxera lhe renderam um Te amo, negona. bem tímido, que talvez nunca chegasse a ser lido.