segunda-feira, 30 de julho de 2012

Jovem-velho



Como eu podia aparentar ser tão jovem? Por fora ninguém me daria mais de vinte anos, mas por dentro meus dias estavam contados. Aqui dentro posso sentir a pele enrugada e o ossos velhos que limitam meus movimentos.

Entre pulos e mergulhos, ainda disfarço bem. Minha vontade agora, entretanto, era me sentar com minha xícara de chá e ouvir músicas antigas, de épocas em que eu nem era nascido, que me recordam momentos  ainda que não vividos. Talvez eu tenha sido a combinação errada de alma e corpo. Talvez devessem me abrir em uma maca de hospital e dizer o que há de errado comigo.

Às vezes me junto aos jovens e tento me misturar, mas eles me cansam em pouco tempo. Seus hormônios me dão náusea. Essa jovialidade toda me deixa tonto. Acabo me sentando em um canto mais isolado, trocando cartas e causos com companheiros senis. Digo a eles que estou apodrecendo e meu maior medo é que eu morra por dentro, mas continue vivendo por fora.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Despedida



Checo o relógio mais uma vez antes de chegar à estação de trem. Eu quero estar lá na hora certa. Adentro o local e logo a vejo, sentada em um banco, a mala ao seu lado. Garota-de-nome-difícil. Os cabelos ondulados, que em outrora tanto lhe cansaram, reluzem refletindo o pôr do sol do momento.

“Quase chego atrasado”, digo sorrindo sem graça e me sento ao seu lado.

“Ainda há tempo”, ela diz e é como se o vento de primavera tivesse passado por ali. Sua voz de cerejeiras e brisas doces me faria falta. Ainda que continuassem tentando, ainda era impossível imitar o seu som.

“Se lembra de como nos conhecemos?”, ela pergunta.

Eu nunca havia me esquecido.

“Era novembro”, ela continua. “Você estava perdido entre ilhas e cubículos e conversamos sobre máscaras, sextas-feiras e roupas que nunca combinaram.”

“E agora você é toda importante e vai nos deixar.”

“Eu preciso. Estou cansada, você sabe. E esse não é o meu lugar.”

Eu sabia disso tudo.

O apito do trem avisa sua chegada. A garota se levanta e pega sua mala, que era pequena demais para levar tudo que ela vivera por aqui – eu esperava estar em algum cantinho espremido ali dentro.

Nos abraçamos.

“Garota-de-nome-difícil”, eu sussurro.

“Você sabe que meu nome é ... “

Balancei a cabeça, confirmando.

Me distraio por um momento procurando a carta que tenho que entregar a ela, mas quando meu olhar a busca, não consigo encontrá-la.

Pronuncio seu nome agora certo. Não gaguejo. Um gosto doce me vem à boca. Mas ela não está mais ali para ouvi-lo. O trem se afasta, deixando para traz fumaça e saudades.

para Julia

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Fotografia


Namoravam há três anos e nunca haviam tirado uma foto juntos. A ironia: ela era fotógrafa.

sábado, 21 de julho de 2012

O último beijo



Me arrependi de ter lhe pedido aquele beijo. Beijos roubados sempre me agradaram o paladar, mas beijos forçados são como um deserto sem oásis. Sua boca seca nem se moveu quando meus lábios encontraram-na. Havia também certa eletricidade ali, não daquela boa que corre o corpo num primeiro encontro, mas daquela que repele, que dá medo de se machucar.

Mal nossos lábios se tocaram e eu recuei, notando sua expressão indiferente. Tive receio em insistir e ser sugado para seu saara, mas eu deveria ter tentado. Viveria exausto dentro de você, deixando que me absorvesse, se isso trouxesse vida a sua boca.

Por isso putas não beijam. Beijo exige compartilhar um pouco de sua loucura e elas preferem manterem-se inócuas em sua devassidão. Você não era puta, mas preferiu manter-se afastada também, a salvo. Quando te puxei para junto de mim, senti seu corpo tenso. Você sabia o que eu queria. Você sempre soube, mas esteve sempre desértica, elétrica, distante.

Na minha cabeça, eu finjo que o tempo parou naquele microssegundo, assim eu posso fazer durar o quanto eu queira. Às vezes, assisto em câmera lenta, dá um ar dramático legal, porém nunca chego ao fim do vídeo-pensamento, quando os lábios se separam. Eu edito em minha mente e corto essa parte, adiciono falas e efeitos – você sempre diria: por favor, não pare! ou colocaria a mão em minha nuca e não permitiria que nos afastássemos.

Se você soubesse que aquele seria o último beijo, talvez tivesse caprichado, ou mesmo nem o tivesse dado, fazendo com que não houvesse assim nenhuma lembrança de um beijo final.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Zumbi corredor



Os músculos das minhas pernas se contraem e relaxam de acordo com as minhas passadas. Estou correndo. Nesses minutos de pseudofelicidade, sinto o sangue fluindo com força para baixo. Meu cérebro está quase seco e finalmente todos aqueles pensamentos vão embora. 

Meu peito ainda exibe a cicatriz da cirurgia recente. Três aros no coração para aguentar o tranco. Não esperaria os seis meses de repouso; não esperei sequer um. Se eu estivesse pensando nesse instante, me daria medo imaginar a ferida se abrindo com o esforço e meu órgão pulsante caído ali no chão, sujeito a ser pisado por qualquer transeunte distraído.

Zumbis não pensam. Eu correndo sou um zumbi; por alguns momentos sou essa casca sem vida e sem preocupações. Direito, esquerdo. Direito, esquerdo. O padrão se repete sem fim. Acelero o passo e minha respiração segue o ritmo. Procuro mais problemas e eles próprios me motivam a esquecê-los, então corro. Esse é meu ciclo vicioso. O dificuldade de correr assim é nunca chegar a lugar algum.