quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CRÔNICA: O mistério da velhinha do ônibus



Era impossível dizer sua idade ao certo, mas beirava os 80. Tinha as rugas e o excesso de pele que toda pessoa de 80 anos tem. Seu cabelo era branco, encardido nas pontas, andava de modo lento e tinha um rosto sereno. Olhando assim, sem conhecê-la, qualquer um diria que era uma velhinha bem simpática (digo sem conhecê-la pois acho que ninguém a conheceu na realidade – talvez nem ela mesma). 

Tal velhinha era reconhecida por todos que freqüentavam o Ônibus 581 que passava pontualmente às 23h na Rodoviária de uma cidadezinha qualquer. 

A velha senhora sempre carregava em sua mão direita uma sacola cinza com dois pacotes de papel higiênico e sempre se sentava no terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo do ônibus. Era como um ritual e quase hipnótico de se ver. 

Vez ou outra, um ser distraído ou desinformado acabava se sentando no terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo do ônibus e a idosa se irritava. Essa era uma das poucas ocasiões em que se podia ouvir algum som emanando de suas cordas vocais: eram gritos, xingamentos e certos palavrões, querido leitor, que confesso desconhecer o significado. 

Esta senhora possuía essa única exigência para aqueles que a cercavam: não podiam de forma alguma sentar-se no seu banco! Sempre fazia valer esse seu ‘direito adquirido’, uma expressão que aqui significa um direito que conquistou através da sua força vocal. 

Foi assim durante um bom tempo. Todos que utilizavam o Ônibus 581 conheciam a velhinha e seu constante hábito de comprar papéis higiênicos. Aliás, fato este que nunca ficou bem esclarecido. Os tititis durante a viagem eram diversos, mas no fim chegaram ao consenso que deveria ser por necessidades fisiológicas mesmo; isso justificaria o cheiro estranho que ela exalava. 

No mês de outubro, porém, a chuva começou a castigar o ambiente e caía pesada na cabeça de alguém que, por desventura ou esquecimento, houvesse se esquecido de pegar o guarda-chuva antes de sair às ruas. Foi nesse período que a velha senhora desapareceu. Ninguém mais a viu freqüentar o ônibus nem seu cabelo branco encardido e nem o cheiro que às vezes chegava a desagradar. Talvez tivesse medo que a chuva pudesse dissolver o precisos conteúdo de sua sacola. 

Independentemente do que ocorreu, ela realmente não foi mais vista; e mesmo que o ônibus estivesse lotado (o que raramente acontecia), o terceiro banco da segunda fileira do lado esquerdo nunca mais fora ocupado. Sempre quando os relógios marcavam 5 minutos antes das 23h os cidadãos, com olhos fundos e sonolentos, colavam suas cabeças nas janelinhas e procuravam, em vão, pela velhinha e sua sacola de papéis higiênicos. 

Mas ela não estava mais lá. 
E o ônibus partia.

Esse é um dos antigos, que era para ser um conto e acabou se tornando uma crônica, ou um conto-crônica, sei lá. Deu saudade desse tempo...

Um comentário:

  1. Um artigo? Como assim? Isso aconteceu mesmo?!
    Huhaua, eu gostei, ficou engraçado, e no final senti um suspense (o que aconteceu com a velhinha?!) :))
    Essa parte em que você explica o significado da palavra me fez lembrar o Lemony, rs

    http://bruna-morgan.blogspot.com

    ResponderExcluir